Batalha

DESENHAR DISCURSO: DIGRESSÕES SOBRE UMA URBANIDADE DISRUPTIVA.

Numa das suas passagens cravada de um pessimismo corrosivo E. M. Cioran escreveu: "Seja qual for a cidade onde me leve o acaso, admira-me o facto de não se desencadearem todos os dias nela levantamentos, massacres, uma matança sem nome, uma desordem de fim de mundo.

Como podem, num espaço tão reduzido, coexistir tantos homens, sem se destruírem, sem se odiarem mortalmente? Para dizer a verdade, odeiam-se, mas não estão à altura do seu ódio. Esta mediocridade, esta impotência salva a sociedade, garante-lhe a duração e a estabilidade."

A violência destas palavras ecoam no meu pensamento há muitos anos; lembro-me de enquanto adolescente ficar admirado com a capacidade de se construírem pontes sem caírem, de se organizarem serviços públicos sem entrarem em ruptura, enfim, da capacidade das coisas funcionarem quando a probabilidade de ruptura era enorme.

Assim, o que sustenta esta funcionalidade? Será a mediocridade referida por Cioran? Será simplesmente um instinto de sobrevivência? E o que dizer do culto do entretenimento, do lazer e desse espécie de hedonismo colectivo que caracteriza a actual sociedade tardo-capitalista?

Por outro lado, como se inscreve a acção artística e cultural neste âmbito? Se as relações sociais tendem a sedimentar-se em regimes de uma previsibilidade convencional, qual o espaço existente para atitudes de resistência à mediatização do espaço privado e, por oposição, à crescente privatização do espaço público, e à consequente perda de sentido crítico perante o real?

Numa época em que nas artes visuais se confunde com leviandade meios de expressão com a capacidade de geração de um discurso crítico, pareceu-me interessante ancorar esta proposta expositiva num contexto estritamente delimitado pela prática do desenho enquanto modalidade preconceituosamente associada a um suposto tradicionalismo, por oposição a um hipotético vanguardismo das linguagens multimédia ou associadas aquilo que genericamente se apelida de instalação. A capacidade do desenho se estabelecer enquanto plataforma de problematização do real tem vindo a ser demonstrada com particular acutilância no nosso contexto: as vossas propostas recentes vieram demonstrá-lo e é nessa perspectiva que agora se lança o desafio de pensarem hipóteses de trabalho para esta ocasião.

 

Miguel Von Haffe Perez, 2005